sábado, 5 de dezembro de 2009

Diogo Vaz Pinto

"Na última infância já só trocávamos desinteresses
e olhares de despedida, amostras de perfume
gratuitas e algumas passagens sublinhadas
- os reflexos cada vez mais baços de uma bijutaria
existencial. Partimos o mundo em metades,
deitámos mais cedo os filhos que não tivemos
e despimo-nos já sem desejo, só um resto de ternura
misturada com o susto que nos corria nas veias.

Há umas noites atrás vi-te a escassos passos
de um clube nocturno. Pediste lume a um estranho
e eu tentei avaliar a conotação
presa em cada gesto teu, na largura do sorriso,
na força do olhar, etc. Não sei o que me pareceu.

Esta manhã, à saída do duche, vi que conseguiste
aparecer na televisão. Já que é o que querias
dou-te os parabéns. Tive uma certa pena
de ti - ou de nós, não sei. Logo a seguir
alguma morte mais assinalável teve destaque
na engrenagem noticiosa, junto com a actual crise
de qualquer coisa. Como sabes não ligo muito
aos advérbios de modo que colam as nossas sensações
e se ainda ligo a televisão é só porque esse
é um outro modo mais leve de me calar e sentir
que sou estúpido e estou sozinho. Eis o inferno,
esta loja de conveniência aberta 24 horas por dia,
todos os dias da semana.

Além de umas latas de cerveja e do maço de cigarros,
repara que nenhum de nós precisa muito de nada disto.
Comparar o tamanho das cicatrizes pode ser ainda
uma forma de cruzar palavras, uma imagem de marca
ou até uma patologia. Ou talvez seja apenas a natureza
das coisas restantes - o pouco com que escapamos
à guilhotina do silêncio. Seja como for eu não vim aqui hoje
para acender algum significado, não sei se a vida
é isto ou se se aproveita mais de outros versos,
nem sei se ainda vamos a tempo ou se vale
sequer a pena mudar alguma coisa. A mim agora
só me apetece descer devagar esta rua
e apagar contigo, uma a uma, todas as luzes da cidade."

E já que a Teresinha tanto defende os posts, Fernando Namora:
"E encostada a mim, oferecendo o corpo como escudo, teve, de súbito, um gesto tão feminino, tão humilde, que, por muito que eu o evitasse, me enterneceu: ela descalçara os sapatos, atirara-os para longe e dissera, apertando-me sempre:
-Assim está mais certo. Fico mais pequenina junto de ti. Do meu verdadeiro tamanho.
Do seu verdadeiro tamanho: uma pobre coisa exposta às ressacas do meu temperamento"

2 comentários:

Anónimo disse...

Fortíssimo

Gonçalo Bilé

Teresinha disse...

o melhor post de todos;) 10 a zero para o Marco!