À mesa do café nasceram e morreram revoluções em Portugal. Poder-se-á dizer que muito da história política do país se fez aí. No imaginário dos lisboetas menos novos, a Brasileira - sem o actual balcão -, os desaparecidos Café Chiado, Martinho e Brasileira (ambos do Rossio), Gelo, Chave d'Ouro, Portugal, Palladium, Montecarlo, Paulistaria, são lugares indissociavelmente ligados a um tempo de tertúlias artísticas e literárias. Não se ia ao café apenas para tomar apressada «bica»; ali estudava-se, ali aprendia-se com escritores, pintores, cientistas que lá estariam das tantas às tantas horas. Em alguns, como o Montecarlo, também se jogava bilhar, xadrez, gamão, damas. Engraxavam-se sapatos. E até se faziam conferências de imprensa, nenhuma tão famosa, todavia, como aquela em que Humberto Delgado, no Chave d'Ouro, em 1958, anunciou que demitiria Salazar.
Território quase exclusivamente masculino, poucas mulheres se atreviam a desafiar os costumes e a misturar-se com os grupos de homens, que, à volta da pequena mesa, reinventavam o mundo.
Não seria o Marquês de Pombal o responsável pelo aparecimento do primeiro café em Lisboa. Mas propiciaria a profusão destes estabelecimentos quando, depois do terramoto de 1755, com o plano de recuperação, abriu novas perspectivas urbanísticas e comerciais. Gérard-Georges Lemaire (in «Les Cafés Littéraires», Paris, 1977) menciona o botequim de Marcos Filipe, no Largo do Pelourinho. Fechou em 1860, depois de ter ganho reputação, no princípio do século XIX, de ponto de encontro de patriotas que conspiravam contra os invasores napoleónicos.
Entre o café e a taverna, os operários portugueses preferiam a segunda. A «gente fina» ia ao Nicola jogar bilhar. Não seria, porém, essa clientela que lhe daria fama até hoje. Mas as tertúlias de políticos e de poetas como Bocage. Quem muito lhes apreciava a presença, em particular a dos poetas, era o criado José Pedro da Silva. Emprestava-lhes dinheiro «a fundo perdido» e, no caso de Bocage, pagou-lhe mesmo o funeral.
José Pedro da Silva deixou o Nicola para se estabelecer ao lado por conta própria. Aprimorar-se-ia na decoração do botequim com cachos de uva e parras, pintados a primor. E lá começaram a chamar-lhe «das Parras», ponto de encontro de simpatizantes liberais e artistas de vários misteres.
Em 1824, quando fechou, deixava a memória de algo irrepetível: um gabinete, que o proprietário mandara construir a um canto do salão, para uso exclusivo dos poetas: chamava-se Lugar Favorito dos Sábios. Lá entrar constituía privilégio.
«Lisboa era o Chiado, e o Chiado era o Marrare, e o Marrare dava o tom (...)», escrevia Sousa Bastos, em «Lisboa Velha, Setenta Anos de Recordações». Inaugurado em 1820 e de certo modo sucessor do Botequim das Parras, o Marrare era o mais requintado dos quatro cafés que o napolitano António Marrare abrira em Lisboa. Um luxo, a decoração de madeira polida, que logo lhe valeu o sobrenome de Marrare do Polimento. Além da sala de bilhar, tinha ainda um pequeno pátio coberto por uma clarabóia envidraçada onde, no Verão, as senhoras podiam comer os melhores gelados da cidade. Polido era também o atendimento: criados de libré serviam excelente café em cafeteiras de prata. Requintes para uma clientela ávida de mudança. O Marrare tornara-se «o lugar de reunião de todos os elegantes e todos os homens de Lisboa», como escreveu Bulhão Pato. Basta lembrarmos alguns dos indefectíveis: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Passos Manuel, José Estêvão. Fechado em 1866, o Marrare reviveria em «Os Maias» de Eça de Queirós. No século seguinte, no mesmo número da Rua Garrett, teria digno sucessor: aquele que alguns considerariam o mais belo de Lisboa: o café Chiado (1925-63).
Tantos outros cafés houve na cidade com histórias que fizeram a história cultural e política do país: um dos mais antigos, o Martinho da Arcada, que Pessoa, sentando-se sempre à mesma mesa, frequentou até morrer; o Herminius, na Almirante Reis, um café de «reformados, de desempregados e de pequenos chulos», como escreveu Cardoso Pires, foi, com o Gelo, ponto de encontro do grupo surrealista. O Vá-Vá, também conhecido pelo «ninho de lacraus», nos anos 60, reunia realizadores do cinema novo português. Na mesma altura, Ferreira de Castro frequentava a pastelaria Veneza. Almada Negreiros, a pequena Brasileira do Chiado.
José Cardoso Pires tanto ia ao minúsculo Passo - poiso de Ventura Ferreira, Fernando Namora e Palla e Carmo, onde se bebia o meio uísque mais barato de Lisboa - como ao Montecarlo, que juntava Carlos Oliveira, Abelaira, Gomes Ferreira e outros «herdeiros» do neo-realismo. Coexistiam - à distância de algumas mesas - com surrealistas e «aparentados». De Pedro Oom a Virgílio Martinho, de Luís Pacheco a Herberto Helder.
O 25 de Abril confundiria, no entanto, à sombra do PCP, parte substancial dessas capelinhas. Último grande café de tertúlias da cidade, o Montecarlo congregou os clientes dos que iam fechando: até ao seu encerramento, nos anos 90.
Excerto de http://www.trazegnies.arrakis.es/rest-lisboa.html
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