- Vamos andando
sobretudo quando estou sentado
- Como estás?
é uma bela questão. Normalmente respondo
- Sei lá
porque não gosto de mentir. E sei lá de facto. Umas vezes estou redondo, outras quadrado, outras cheio de picos, outras liquefeito, outras não estou sequer: deslizo por aí armado em nuvem.
- Como estás?
e é impossível responder
- Deslizo por aí armado em nuvem
de modo que me calo ou resmungo sons desconexos. Não sou de todo mau em sons desconexos, tenho anos de treino. Escrevo isto e sinto as almôndegas a conversarem comigo: despenharam-se-me na barriga feitas pedregulhos, rebolam cá por dentro num fundo de puré, meio dissolvido pelo vinho branco: é o que acontece a quem se mete com minipratos. Devia ter pedido bicos de rouxinol. Ou ter acertado no dia do almoço com os meus camaradas de guerra a lembrar os maus velhos tempos
- Sai uma de bicos de rouxinol para a mesa doze
e a cozinheira lá dentro a prepará-los.
Se me interrogarem
- Como estás?
explico que não estou redondo nem quadrado. Neste momento acho-me mais uma espécie de losango.
- Estou losango
quem interroga a olhar para mim sem entender:
- Losango?
e eu
- Sim, losango, nunca te sentiste losango?
Nunca se devem ter sentido losangos. Há alturas em que me acontece pensar que as pessoas são esquisitas mas deve ser problema meu. Aposto o que quiserem que é problema meu."
Gosto de poesia, de prosa com laivos de poesia, de psicologia como forma de descorrer motivos, de sentimentalismos sem lamechices (apesar de ainda estar para descobrir onde se separam ao certo).
Hoje quero ler mas vou beber, gosto de beber, especialmente com determinadas pessoas, pessoas com quem me divido entre conversas sérias (pseudo?) ou conversas parvas, beber sem uma pessoa assim é beber sozinho sem ficar com ar de alcoólico, porque é que isso me haveria de interessar?
Não gosto de regras que não as minhas, de principios que não os meus nem de boa educação quando se lê hipocrisia.
Gosto da confiança na certeza de quem nada sabe e da verdade que não me é indiferente.
"Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. Quantos são hoje? Nunca sei às que ando, confundo tudo, perco-me sempre, os dias, as horas, às vezes cumprimento pessoas que não conheço, há uma semana ou isso entrei num antiquário, sentei-me a uma mesa D. João V e quando a senhora da loja veio, de uns armários franceses ou lá o que era, pedi-lhe que me servisse um uísque. Uma senhora com mais pulseiras que tu e anéis caros, de maquilhagem a lutar com a idade e a perder. Ficou a olhar para mim de cara ao lado. Depois perguntou-me se eu estava bêbado e depois começou a medir a distância entre ela e a porta a fim de chamar por socorro. Numa das paredes paisagens emolduradas a talha, o retrato de uma viscondessa decotada, estampas de cavalos com legendas em francês. A viscondessa usava um anel no indicador rechonchudo e tinha cara de jantar bicos de rouxinol todos os dias, servindo-se dos talheres como se cada dedo fosse um mindinho, desses que a gente enrola para beber o café. A minha irmã, pelo menos, enrola. Eu sou mais para o género de o esticar, tipo antena. Educações. Tu não enrolas nem esticas, deixas a mão inerte na minha. Não te apetece apertar-me, não tens vontade de ser terna? Gostava que ma apertasses três vezes, depois eu apertava três vezes, depois tu apertavas quatro vezes, depois eu apertava-te quatro vezes e ficávamos que tempos assim, num morse de namorados. Fantasias. Desejos. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo. Segundo a minha irmã sou só parvo. A propósito de tudo e de nada
- És tão parvo
e eu, mudo, a dar-lhe razão no fundo de mim(...)" Completa
1 comentário:
gostei muito, marco!
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